Continuando a apresentação dos poemas de João Miguel Fernandes Jorge inspirados em peças do Museu Machado de Castro, apresentamos hoje os textos lidos pela Francisca, pelo Tiago e pelo José Carlos.
ANJO ATLANTE
São dois, os anjos.
Que peso suportam os ombros?
Vestidos de flor de roseira
no bater do coração, à espera de folgar
próximos, logo distantes.
De madrugada, quando a lua se esconde e
o músculo das espáduas se derreia
os dois, a par
que eram moços, que noivavam, que
iam por abismos num sem querer
um ano em outro se desdobra
num jeito rapaz de querer passar à frente
de transparência em transparência
vivos, impuros
Este belo poema inspira-se em dois anjos esculpidos pelo famoso Mestre Pero, no séc. XIV, que conservam ainda muito vivas as cores originais com que foram pintados, bem como as rosas a que o poeta alude. Chamam-se atlantes porque nos tempos da Grécia antiga, Atlas era a divindade que segurava o mundo nos ombros. Estes anjos são provenientes do convento de Santa Clara-a-Velha e eram mísulas, quer dizer, sustentavam uma estrutura pesada da arquitetura do edifício, daí o nome atlantes.
O Tiago leu um poema dedicado a Santa Ágata. A escultura de Mestre Pero mostra a mártir, natural da Sicília, a exibir os seios, uma vez que lhes foram cortados como castigo por não renegar a fé cristã. Diz a lenda que Ágata, que viveu no séc. III e era natural de uma região da Sicília chamada Catânia, foi morta depois de ter sido submetida às mais humilhantes condenações, como ter sido enviada para uma casa de prostituição («prostíbulo»). Por fim, conforme relata o poema, o cônsul Quintiliano mandou matá-la com brasas ardentes numa cela da prisão. Diz-e que o Etna, vulcão da Sicília, entrou em erupção. Esta estátua veio de uma capela de Avelãs de Caminho, localidade próxima de Anadia. O culto de Santa Ágata foi muito popular na Idade Média, tal como outras mártires do Cristianismo primitivo, como Santa Comba, que tem uma estátua mesmo ao lado desta.
SANTA ÁGATA
Veio de Avelãs de Caminho a
sedutora Ágata, a pisar
carvões ardentes. Traz num
prato os seios cortados. Mestre
Pero deitou-lhe a pedra
escorridos
sombrios cabelos, magoado olhar,
beleza da Sicília, sua terra. Entrou
num prostíbulo, não em Avelãs de
Caminho, mas em Catânia, por se recusar
aos deuses e aos desejos
do cônsul Quintiliano. Por ela, o Etna
fez tremer a ilha toda.
Mestre Pero deu-lhe esse jeito ao
andar, grácil, sobre o ardor do
carvão. E os seios,
aureolados de sangue, mordiam na
carne viva, como se felizes dissessem
- A morte é uma prenda de ouro
jeito de dormir profundo E
Ágata se fez ao martírio de Avelãs de
Caminho até Mirleos de Coimbra
com seu vestido rosa-chá pisava a
doença de deus
seguia para o que quiser.
O José Carlos leu um poema inspirado num anjo heráldico, isto é, um anjo que segura um brasão de Portugal. O escudo das quinas, juntamente com a esfera armilar, indicam logo que se trata de uma escultura do tempo do rei D. Manuel I, ou seja, do primeiro quartel do séc. XVI. É da autoria de Diogo Pires-o-Moço e provém do Mosteiro de Santa Cruz onde, na fachada, fazia um par com um outro em tudo igual que se encontra atualmente no núcleo museológico visitável nos claustros dessa igreja. Em cada um dos lados do saio, o anjo exibe uma corda que, embora não se veja na fotografia, é referida no poema.
ANJO HERÁLDICO
As armas do reino entre as mãos. A
esfera armilar aos seus pés. Geminado anjo - o
seu igual permanece na frontaria de Santa Cruz.
Cordame de navegar ata-lhe o saio. Pesada barca
no campo da noite.
À luz da aurora as velas ondeiam a fazer sua
nossa dor de hoje
- outra vez sol outra vez as trevas - que nos
espera ainda?
cresce a tormenta, as mãos caem em abandono
a pedra de armas num chão de fogo desfaz-se em
pedaços. Um tremor nos lábios. A
face perdeu-se de triste. As asas romperam
a procela dos céus.